Desinformação e saúde em tempos de COVID-19
Ao invés de falar em fake news, vou me referir mais precisamente à desinformação. A troca das palavras não é apenas uma questão de tradução. Desinformação engloba muito mais que fake news e é importante entender como ela pode se manifestar e quais são essas diferenças para que possamos tomar melhor decisões.
Fonte: Ireton & Posetti (2018, p. 48)
A circulação de informações falsas sempre existiu e é preciso fazer uma diferenciação. Quando falamos em desinformação, não estamos apenas falando de informações incorretas, decorrentes de conexões falsas ou de um conteúdo ilusório. Também não estamos falando apenas de má-informação ou uma informação ruim, como vazamentos, assédios, discursos de ódio que tem o objetivo de causar um dano.
Como mostra a Figura 1 acima, a desinformação é uma combinação do falso com a intenção de dano para atingir um objetivo, pois não consideramos que seja uma prática ingênua ou despretensiosa. Há um propósito ou intenção na circulação de um contexto falso ou um conteúdo impostor, manipulado ou fabricado.
Antigamente, dizia-se que poderíamos repetir mil vezes uma mentira e ela não se tornaria verdade. Nossa experiência recente mostra que ela não se torna verdade, mas pode causar danos irreversíveis. No caso da pandemia isso ficou evidente e tem causado muitas perdas que poderiam ter sido evitadas.
A jornalista canadense Naomi Klein em seu livro Doutrina de Choque (Klein, 2008) fala como os neoliberais utilizaram-se de grandes catástrofes e ditaduras no século XX e início do século XXI para implantar sua agenda política de estado mínimo. Em uma situação de catástrofe, fragilidade ou perigo, as ações autoritárias acabavam sendo legitimadas e aceitas de forma passiva pela população como sendo a salvação possível. No mundo atual, já não são mais necessárias ditaduras ou catástrofes naturais para criar esse ambiente de instabilidade. A desinformação pode instaurar o caos, o medo e a apatia do povo ao ponto de drenar sua capacidade de articulação e discernimento entre o bem e mal. Infelizmente, é esse caos que temos observado no Brasil e em outros países no mundo, sobretudo durante a pandemia. A UNESCO, preocupada com o tema, passou a denominar esse fenômeno como desinfodemia (UNESCO, 2020).
Mas vamos olhar o contexto para tentar entender a dinâmica do que chamamos ecossistema de desinformação.
Contexto social no século XXI
A primeira pergunta que podemos fazer é porque a desinformação ganha essa nova cara no século XXI? As transformações na sociedade e nas tecnologias contribuíram para tanto e posso citar algumas:
- falta de confiança na mídia tradicional,
- advento das mídias sociais,
- acesso e rápida circulação de informação “gratuita”,
- alto volume de dados e conteúdos digitalização (inclusive fotos, gráficos e imagens)
- novas tecnologias que permitem a alteração de dados, como o chamado deep fake, que usa inteligência artificial para reconhecimento facial e recriar imagens e vozes.
- democratização de vozes: qualquer um com acesso à internet e um mínimo preparo pode ser um criador ou divulgador de conteúdos com tecnologias fáceis de usar, do tipo “faça você mesmo”, e a ajuda de inúmeros tutoriais.
Informação “gratuita”
Se a informação é tão estratégica e fonte de poder, porque ela seria gratuita no século XXI? Utilizei propositalmente aspas em informação “gratuita” e gostaria de retornar a este assunto pois acho que ele é fundamental para o entendimento do contexto mercantilista da desinformação.
Muitos devem ter visto um documentário lançado em 2020 chamado “o Dilema das Redes Sociais” do diretor Jeff Orlowski. O filme tenta explicar algo complexo em uma linguagem simples: como funcionam os algoritmos e o sistema de remuneração das mídias sociais.
Os algoritmos estão ligados à forma como o seu computador e a internet mapeiam as preferências do usuário e depois conseguem lhe direcionar apenas conteúdos do seu interesse para que ele tenha uma experiência de navegação agradável e rentável.
Se você gosta de ballet, não é que a rede está cheia de coisas sobre o tema e o mundo inteiro resolveu falar sobre o assunto. É apenas o algoritmo funcionando e te prendendo em uma bolha de afinidades, onde você vai se relacionar e trocar predominantemente com pessoas que compartilhem os mesmos interesses que você. Mas às vezes o algoritmo falha.
Um dia fui comprar uma mamadeira a pedido da minha irmã e até hoje recebo eventualmente anúncios de fraldas, fórmulas e produtos para bebês. Mas as chances de o algoritmo funcionar são muito maiores pois geralmente pesquisamos sobre assuntos que nos interessam.
Mas por que estou dizendo isso? Não é errado sermos parte da rede, mas é preciso ter consciência de que o que vimos na internet não representa o todo ou a média das pessoas, mas a média de quem tem os mesmos interesses que os nossos. Precisamos saber da nossa bolha e do risco de estarmos dentro de um ciclo vicioso, recebendo apenas informações filtradas ou frutos desse ecossistema de desinformação.
Em marketing, dizemos que nas mídias sociais e nas plataformas digitais, o produto são os usuários das plataformas digitais. Por quê?
A razão é simples. Quanto mais usamos a internet, mais dados sobre nossos gostos e padrões de consumo estão sendo coletados pelo algoritmo. Os dados coletados são processados e é traçado um perfil de consumo do usuário. Essa base de dados inteligente é um produto vendido pelas plataformas para publicidade. Assim, os anunciantes não precisam fazer propaganda em massa, mas oferecer seus produtos apenas para clientes que tenham interesse potencial no seu produto. Exatamente como aconteceu com a história da mamadeira que acabei de descrever.
Mas a remuneração vai além: as plataformas pagam aos geradores de conteúdo um valor para cada visita e cliques que certos links ou páginas recebem. Isso porque quanto mais pessoas visitarem aquela página ou conteúdo, mais propaganda poderá ser anunciada ali e mais anunciantes conseguirão vender seu produto. Então, cada clique serve como se fosse um anúncio publicitário e o divulgador de conteúdo recebe por atrair essas pessoas até a propaganda. Nesse contexto, o usuário é o produto pois a sua visita está sendo vendida pelo criador de conteúdo para a plataforma fazer um anúncio publicitário.
Essa situação pode estimular o oportunismo, já que quem mais gera conteúdo é mais bem remunerado, independente do seu compromisso com os fatos. E sabemos que muitas páginas criam títulos para pescar cliques. Inclusive, geram polêmicas e, eventualmente, se retratam, mas às vezes o estrago já está feito.
Há outras formas de monetização de desinformação que envolvem muito dinheiro, esquemas complexos e fraudulentos. Não entrarei nesse tema aqui, mas cito o inquérito das “fake news” coordenado pelo ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal[1] como exemplo.
Competição e Proteção
Mas porque as pessoas têm esse impulso para compartilhar desinformação?
Antes de responder a pergunta, preciso dizer que a estratégia para disseminar a desinformação tem um roteiro simples e eficaz. É quase uma receita de bolo. A partir de um fato ou parte dele, imagens reais ou modificadas, gráficos, fotos ou nomes de pessoas, cargos importantes, nome de universidades ou órgãos oficiais são usadas para criar um conteúdo com linguagem muito simples, repetitiva (cíclica e não aleatória) e que captura a atenção das pessoas pela consciência, crenças, medos e sentimentos ao invés da razão ou lógica. Divulga-se primeiro em canais de afinidade, onde encontram um público-alvo e predisposto a acreditar nelas e logo se espalham pela rede pelo compartilhamento comandado pelos usuários ou com a ajuda de robôs, chamados de bots e trolls (Gitahy et al., 2020; Malini, 2020; Posetti & Bontcheva, 2020, p. 05).
Segundo Posetti e Bontcheva, “a desinformação online sobre a COVID-19 é instrumentalizada com fins políticos, racistas, xenofóbicos, sexistas ou outros, e pode incentivar a polarização e alimentar o ódio — em um momento em que a unidade mundial é mais necessária do que nunca” (2020, p. 03). Nesse sentido, arrisco me a dizer que se mantivermos as nossas lentes do “politicamente correto”, tão criticada por grupos de extrema direita, talvez possamos ser poupados de muitas armadilhas. Eu particularmente nunca me deparei com uma desinformação que servisse para o bem das pessoas, que nos colocasse em uma posição melhor que antes.
Também me arriscaria a dizer que, ao receber essa desinformação, há duas reações intuitivas do indivíduo que o levam ao rápido compartilhamento de conteúdos: uma relacionada a proteção e outra à competição.
Há uma tendência dos grupos de indivíduos em se protegerem mutuamente, especialmente contra ameaças iminentes daqueles que são diferentes de si, em diferentes perspectivas (religião, ideologia política, classe social, entre outros). É o que chamamos em sociologia da criação de um “outro”, diferente de mim e do meu grupo. Dessa forma, o indivíduo, ao detectar uma potencial ameaça ou uma oportunidade, quer compartilhá-la o mais rápido possível para os seus afetos para beneficiar ou proteger seus escolhidos (“os bons e os justos”) de todos os males.
A nossa sociedade sempre valorizou muito a informação e o conhecimento como fontes de poder. Aquele que os detêm consegue controlar as narrativas e influenciar pessoas. Até recentemente, essa era uma prerrogativa dos grupos no poder ou da elite intelectual. Com as mídias sociais, cada indivíduo, dentro do seu microcosmos, passou a deter o poder de ser o primeiro a divulgar algo e espalhá-lo ao máximo número de pessoas nas suas redes. A quantidade e a velocidade passaram a ser mais importante que a informação em si. Por isso, nessa competição por ser o mais bem informado, muitas pessoas acabam compartilhando sem ler ou checar se a informação é verdadeira ou não.
Por essa ótica, quando analisamos as narrativas de desinformação relacionadas à saúde, sobretudo ao COVID, observamos que muitos desses conteúdos tentam criar um inimigo ou ressaltar ameaças e medos da população, ao invés de lhes darem as ferramentas para se cuidarem de forma eficaz e tomarem decisões acertadas.
Não gosto de repetir desinformação para não reforçar essas narrativas, mas tivemos casos de difamação, como os que envolviam pessoas, como o empresário Bill Gates, ou mesmo governos, como o da China. Muitos conteúdos partiam de disputas tecnológicas, como o 5G e a nanotecnologia, o uso de vírus para um ataque comunista ou alimentar o imaginário coletivo de que estávamos em uma guerra futurista e vivenciando as distopias que antes víamos no cinema!
Outras vezes, eram especulações sobre hábitos alimentares tidos como exóticos pela perspectiva ocidental e que poderiam ter sido a origem da doença, mas que novamente construíam esse “outro” que já mencionei. Essas narrativas tentavam buscar culpados, identificar inimigos, mas nada mais eram do que demonstrações de xenofobia, intolerância, estereótipos e discursos de ódio.
O chá de gengibre, o gargarejo com água quente, terapias alternativas e outros remédios falsos, ou ainda o físico de atleta, o pensamento positivo, a espiritualidade e outras mensagens aparentemente ingênuas também causam danos. Elas encorajam o indivíduo a não tomar os cuidados necessários, a não usar a máscara e ou evitar aglomerações, na crença de que um chazinho resolveria eventuais problemas.
Do outro lado, longe de ser ingênua, tivemos a campanha feroz para o uso de medicamentos sem eficácia sobre o vírus comprovados pela ciência, inclusive desaconselhados pelos riscos e efeitos colaterais conhecidos pela ciência. Essa onda causou a automedicação em massa da população e confrontos entre profissionais da saúde e pacientes. Nesse contexto, o maior escândalo talvez tenha sido o uso de políticas e dinheiro público para distribuir e incentivar o uso de falsos tratamentos precoces e de medicamentos e terapias sem efeito.
Também houve a reação contra as máscaras e confinamento em nome da liberdade individual, contra o Globalismo-Cultural, o Comunismo, entre outros. Aqui, o medo de um estado opressor era muitas vezes verbalizado com narrativas sobre a ditadura das máscaras ou do confinamento, chegando a mobilizar até mesmo protestos e demonstrações públicas em vários locais no mundo.
Outras narrativas colocaram na mesma balança a saúde ou a economia, como se fosse preciso fazer uma escolha e sacrificar vidas, sobretudo dos idosos (velhofobia) e mais fracos (Darwinismo ou até eugenia), para evitar uma recessão. Também havia os defensores da imunidade de rebanho e do tal isolamento vertical, mesmo quando outros países já haviam abandonado a ideia.
Essas narrativas têm objetivos políticos claros de criar oposições e marcar as separações entre os grupos. No Brasil, não apenas membros do governo, como também empresários ditos patriotas chegaram a gravar vídeos pedindo para o Brasil não parar e ameaçando o povo com um “tsunami econômico” quando ainda não tínhamos nem sequer a vacina pronta. Os argumentos estavam sempre recheados de desinformação, inclusive com distorções na apresentação de dados, como na densidade populacional ou na escala de gráficos.
O menosprezo da doença e seus efeitos, chamando-a de “gripezinha”, por exemplo, seguida de atos como exposição sem máscara e o fomento de aglomerações promovidas por pessoas que deveriam zelar pela saúde pública e dar exemplo mostram que as estratégias da desinformação transcenderam do mundo virtual para o mundo real.
Enquanto a ciência e a maioria das autoridades de saúde no mundo pediam cuidados e proteção, os negacionistas queriam provar suas teorias conspiratórias e desinformação mostrando-se bravos nas ruas, contradizendo e desafiando a ciência, as estatísticas e o resto do mundo. Aqueles que se diziam anti-sistema estavam, na verdade, ajudando o vírus.
Essas narrativas acompanhadas de ações questionáveis do ponto de vista ético e moral entre os agentes públicos e órgãos oficiais me preocupam. Aqueles que deveriam ser os guardiões da ordem e da saúde pública estavam espalhando desinformação e com um único objetivo: manter sua agenda política neoliberal em pé, como anunciado por Naomi Klein. Os ataques virtuais seguidos de atos de desmonte que vimos na saúde, também aconteceu em outras áreas como vimos no meio ambiente, na educação, nos direitos sociais.
Em 2020, fizemos uma pesquisa sobre a desinformação e o COVID no início da doença comparando Brasil e Hungria. Observamos que a desinformações e o negacionismo prejudicaram a rápida reação dos governos e da população tanto na profilaxia quanto no tratamento do COVID 19 (Gitahy et al., 2020). Posso deixar o link aqui também, caso alguém tenha interesse em ler esse estudo comparativo.
Enfim, a desinformação se torna perigosa e até mortal quando ela se materializa em atos concretos.
Mecanismos de proteção
Há muitas discussões sobre as soluções para combater a desinformação, mas nenhuma é 100% eficaz ou simples de ser implementada. Vou citar algumas como exemplo:
- Regulação porém esbarra nos discursos sobre liberdade de expressão e de impacto sobre o livre uso das tecnologias. No caso do Brasil, em particular, essa alternativa é bastante improvável de acontecer dado que o próprio ministério da saúde e instituições de classe ligadas à saúde pública não se comprometem com a ciência e com povo, como ficou explícito na CPI da pandemia.
- Gerar material informativo de qualidade e educar as pessoas para compreender esse universo do ecossistema de informação e, assim, se proteger melhor. A UNESCO, por exemplo, elaborou várias cartilhas para ajudar no processo de entendimento da desinformação e algumas delas são específicas para COVID 19. Posso deixar o link aqui nos comentários pois ela nos ajuda a identificar a desinformação nas redes sociais.
- Ações da sociedade civil para cobrar diligência das plataformas de mídias sociais sobre a qualidade de seus conteúdos. Isso não é um cerceamento à liberdade de expressão, mas um meio de evitar danos irreparáveis como o que temos experimentado na pandemia. Há também grupos organizados para pressionar as empresas anunciantes a escolherem com responsabilidade os canais que veiculam propagandas para não patrocinarem desinformações nas redes. Essa é uma forma bastante interessante de quebrar a cadeia de monetização da desinformação.
- Organizações de checagem de fatos e esse modelo tem funcionado no Brasil. É uma tentativa de furar essas bolhas e fornecer ferramentas aos indivíduos para que eles possam checar as informações antes de repassá-las (se for possível, dado a velocidade do processo de disseminação) ou reverter algo como uma decisão tomada sobre hipóteses falsas, como a decisão de não tomar vacina ou o uso de tratamento precoce, que têm causado tantos danos no Brasil e no mundo.
Espero que esse texto tenha ajudado o leitor a compreender melhor o contexto pois a consciência sobre o que está acontecendo é o primeiro passo para que possamos discernir melhor as informações que chegam até nós e saber o que fazer com elas de modo prudente e seguro para a nossa saúde e de todos.
Referências
Gitahy, L. M. C., Villen, G., & Ares, G. (2020). Science, Politics, and the Pandemic. 15. https://www.researchgate.net/publication/345499595_Ciencia_Politica_e_a_Pandemia
Ireton, C., & Posetti, J. (Orgs.). (2018). Jornalismo, Fake News & Desinformação e Manual para Educação e Treinamento em Jornalismo (S. R. Reedman, Trad.). UNESCO. https://combatefakenews.lusa.pt/wp-content/uploads/2020/08/ManualFakeNews-2019-UNESCO.pdf
Klein, N. (2008). The Shock Doctrine (1o ed). Penguin Books.
Malini, F. (2020, julho 27). Quando tudo parecia ser tão distante daqui: A eclosão das narrativas sobre covid-19 [Blog]. Medium. https://medium.com/@fabiomalini/quando-tudo-parecia-ser-t%C3%A3o-distante-daqui-a-eclos%C3%A3o-das-narrativas-sobre-covid-19-23ef531b1be1
Posetti, J., & Bontcheva, K. (2020). Desinfodemia: Decifrar a desinformação sobre a COVID-19 — Resumo de políticas 1. UNESCO. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000374416_por
UNESCO. (2020, setembro 29). Combate à desinfodemia: Trabalhar pela verdade em tempos de COVID-19. UNESCO. https://pt.unesco.org/covid19/disinfodemic
[1] Inquérito (INQ) 4781 do Supremo Tribunal Federal — STF (https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1207793476/referendo-no-inquerito-inq-4781-df).