Direitos Humanos e Direitos das Mulheres: a Educação Fundamental
(publicado em 28/11/2019 em https://www.linkedin.com/pulse/direitos-humanos-e-das-mulheres-educa%25C3%25A7%25C3%25A3o-fundamental-graziela-ares/)
As reflexões deste artigo foram inspiradas novamente pelas aulas e textos da professora de Stanford Dr. Anne Murray [1] e pela entrevista com a especialista em educação e aprendizado PhD. MA. Lynn Murphy [2].
O acesso a educação elementar gratuita está garantido pelo artigo 26º da Declaração dos Direitos Humanos de 1948 [3]. Ainda que globalmente o acesso ao ensino básico demonstre progressos, não se pode dizer que o acesso é universal e o nível desistência ainda é alto [4], sobretudo se considerarmos as questões de gênero.
Figura 1. Percentual de crianças registradas e completando o ensino fundamental [5]
Figura 2. Percentual de crianças registradas e completando os anos iniciais do ensino secundário [6]
O número de meninas que frequentam a escola é menor e mais por período mais curto que o de meninos, sobretudo durante a infância em geral. No entanto, entre adolescentes e jovens observa-se que mais meninos estão fora da escola.
Figura 3. População fora da escola por grupo etário (crianças, adolescents e jovens) e sexo [7]
Dada a complexidade do tema, gostaria de centrar o texto apenas em uma parte do problema relacionando ao acesso e à qualidade do ensino, à desigualdade social e de gênero e à educação sexual. Essa correlação em maior ou menor grau esta apresentada inclusive nas discussões sobre as Metas de Desenvolvimento Sustentáveis (Meta 4 — Educação) estabelecidas pelas Nações Unidas para 2030 [8].
Muitos países assumiram o ensino básico como sendo parte das responsabilidades dos Estados, como o Brasil, por exemplo. Escolas foram construídas e foi garantida a gratuidade que impacta diretamente o acesso à escola do ponto de vista financeiro. Com ela, famílias de baixa renda teoricamente não precisariam mais escolher qual filho teria seu estudo patrocinado pelo orçamento familiar em detrimento à educação dos irmãos.
No entanto, o acesso à escola não depende apenas do custo direto do ensino para as famílias, mas há outros aspectos econômico-sociais relevantes, como por exemplo:
- renda familiar: famílias numerosas e com renda baixa podem optar por retirar os filhos da escola para que possam trabalhar e contribuir para o orçamento familiar ou cuidar das tarefas domésticas e dos irmãos menores para que os pais trabalhem. Conforme mencionado no meu artigo anterior, em algumas culturas, é mais provável que a menina seja escolhida e sacrifique o estudo em situações como essa;
- dificuldades de locomoção: quando as escolas são distantes de casa, não há sistema de transporte público regular, seguro e gratuito e a distância pode ser literalmente intransponível para certas crianças;
- segurança e integridade física: se o caminho para a escola representa um risco para a segurança das crianças pela existência de gangues de rua, vizinhança violenta, escura e deserta ou com riscos de estupro, as famílias impedem as crianças de estudar para não colocá-las em perigo;
- crenças e fatores culturais: também mencionado nos meus textos anteriores, para algumas culturas, sobretudo as patriarcais, pode haver predileção para o estudo dos meninos em relação as meninas quando é atribuído a eles o papel de provedores e à elas, o de cuidadoras, esposas, mães ou donas de casa;
- casamento infantil: o casamento infantil, embora esteja decrescendo no mundo, ainda é uma prática bastante comum em alguns países e muitas crianças acabam por isso abandonando a escola para assumir papéis adultos, como afazeres domésticos, trabalho remunerado e constituição de família;
- gravidez precoce: dentro ou fora do casamento, a gravidez precoce afeta muitas meninas e acaba por impactar a sua saúde (dado os riscos envolvidos) e sua permanência na escola;
- saúde pública e feminina: outras questões como a contaminação por HIV, doenças mentais, dificuldades de locomoção e até mesmo a mutilação genital feminina podem levar as crianças a não frequentarem as escolas por não encontrar ali um ambiente apropriado e acolhedor;
- outros problemas sociais com impacto de gênero como a prostituição infantil, trabalho infantil, tráfico de pessoas, etc podem também impactar o acesso à escola.
A qualidade do ensino precisa também ser questionada. É uma tarefa bastante dispendiosa e exige uma análise crítica (que não consigo fazer) comparar os indicadores de educação e aprendizagem entre países e grupos diferentes. Porém, algumas crianças, mesmo após algum tempo frequentando a escola, continuam iletradas ou com dificuldades de aprendizado. O problema pode estar na formação e remuneração dos professores ou no investimento que tem sido feito no ensino básico e também pode ser resultado de falta de engajamento dessas crianças com a escola e com o saber. Essa desmotivação pode ser causada por problemas nutricionais e fome, problemas de saúde (física ou mental), violência doméstica, dificuldade da escola em acolher e respeitar as necessidades individuais das crianças em diferentes aspectos como tempo de aprendizagem, saúde feminina, identidade ou orientação sexual, etc. As escolas tradicionais, sobretudo no ensino público, são “massificadas” e um tanto quanto masculinizadas.
Por isso, a escola pode ser de pouco interesse ou mesmo traumática para algumas crianças, impactando nos seus resultados de curto prazo e levando-as ao abandono dos estudos no longo prazo. Infelizmente, os dados mostram que o impacto é maior sobre meninas tanto no acesso quanto no abandono [9].
Figura 4. Percentual de crianças fora do Ensino básico fundamental[10]
A Unicef inclusive promove que quanto antes a criança for para a escola, melhor será seu desempenho. Com isso, as políticas publicas deveriam também garantir o acesso a pré-escola gratuita e de qualidade para as crianças [11]. Lembrando que ações nessa linha permitiriam o retorno dos pais (usualmente a mãe) ao mercado de trabalho, podendo inclusive melhorar a renda familiar e outros aspectos socioeconômicos familiares.
Para encerrar esse artigo, gostaria de mencionar o ensino sexual nas escolas. Esse é um tema que por questões culturais, religiosas e, mais recentemente, pelo aumento da popularidade de discursos conservadores na esfera política ainda não obteve consenso nem destaque sobre a sua importância e relação com o ensino fundamental universal. No entanto, como apontado aqui, nos meus artigos anteriores e pela própria Unesco [12], grande parte dos problemas relacionados a gênero que privam as meninas de estudar, de terem acesso a melhores empregos e mais oportunidades na vida adulta está relacionada às questões da sexualidade e da saúde feminina.
Por essa razão, a educação sexual precisa fazer parte do curriculum fundamental. Esse seria um grande passo em direção aos direitos das mulheres sobretudo em relação a sua saúde, segurança e papel econômico-social. Quanto antes as meninas souberem como seu corpo funciona, como cuidar dele e decidir sobre sua sexualidade é que a violência e exploração sexual infantil serão denunciadas, a gravidez infantil e doenças sexualmente trasmissíveis evitadas e outras práticas violentas, como a mutilação genital feminina, combatidas de forma efetiva.
Referências:
[1] (“Anne Firth Murray,” n.d.)
[2] (“About Lynn Murphy,” n.d.)
[3] (Organização das Nações Unidas, 1995)
[4] (“A Growing number of children and adolescents are out of school as aid fails to meet the mark — UNESCO Digital Library,” n.d.)
[5] (Ip61-combining-data-out-of-school-children-completion-learning-offer-more-comprehensive-view-sdg4.pdf, n.d.)
[6] (Ip61-combining-data-out-of-school-children-completion-learning-offer-more-comprehensive-view-sdg4.pdf, n.d.)
[7] (New-methodology-shows-258-million-children-adolescents-and-youth-are-out-school.pdf, n.d.)
[8] (New-methodology-shows-258-million-children-adolescents-and-youth-are-out-school.pdf, n.d.)
[9] (“Impact of incentives to increase girls’ access to and retention in basic education: Advocacy brief — UNESCO Digital Library,” n.d.)
[10] (New-methodology-shows-258-million-children-adolescents-and-youth-are-out-school.pdf, n.d.)
[11] (Um-mundo-pronto-para-aprender-2019.pdf, n.d.)
[12] (“UNESCO defende educação sexual e de gênero nas escolas para prevenir violência contra mulheres,” 2016) e (“UNESCO no Brasil se posiciona sobre questões de violência de gênero | UNESCO,” n.d.)